A Rússia pelo Cinema Russo

Depois da queda de Bizâncio a Rússia passou a carregar o fardo da Ortodoxia sozinha. Aceitou esse fardo como se de um destino divino se tratasse e acreditou que tudo não passava de uma prova enquanto o futuro esplendoroso ou o reino de Deus não vinham. Era uma questão de esperar.


Na realidade o período de espera transformou-se numa época de decisões e convulsões sociais. O fardo revelou-se bem pesado. No início do século XX deu-se uma revolução na Rússia. A utopia comunista era muito semelhante ao tão ansiado reino da verdade e da justiça, e provocou um entusiasmo célere na alma russa. Em toda a história do historial russo esta era a primeira tentativa para o experimentar na vida real.

A Vida

A vida na Rússia, nos anos 20, era absolutamente normal. A revolução e a guerra civil tinham terminado. As pessoas trabalhavam e divertiam-se pacatamente. A vida prosseguia, igual a si mesma, e as pessoas continuavam a ser pessoas na vida real desprotegida, incontornável e frágil e bastante alheada do mundo das grandes ideologias. O trabalho, na cidade e no campo, a praia, os piqueniques, os cafés, as conversas entre amigos... A força de uma realidade como esta reside na sua fraqueza. É uma realidade absurda, desprovida de significado e cómica mas, ao mesmo tempo indestrutível e omnipresente. Parece absorver qualquer ideia com toda a facilidade com o mero intuito de a reduzir imediatamente a cinzas.


Até o cinema e as artes deste período estão desprovidas de qualquer sentido específico e exprimem muito simplesmente aquilo que mostram: a praia, os piqueniques, os cafés e as conversas entre amigos... É nisto que reside toda a essência do cinema russo de então.
O primado da realidade sobre a abstração era irrefutável para muitos dos grandes mestres do cinema, italianos, franceses e checos, por exemplo. Mas os cineastas russos revolucionários não lhe reconheciam validade. Nos anos 20 a União Soviética produziu inúmeros filmes que retratavam a vida quotidiana. Significativamente, a maioria deles eram comédias. Secretamente prevalecia a noção de que a realidade não merecia ser debatida a sério. Na melhor das hipóteses estava condenada a ser uma mera fonte de diversão. Filmes agradáveis, atraentes e com humor.
Mas o cinema russo tornou-se célebre graças a filmes e artistas muito diferentes e a ideias bastante distintas, tal como na sua literatura. O desígnio do novo cinema russo não era divertir as pessoas, o seu objectivo era mudar o mundo. Para esse fim inventou a sua própria realidade, bem como um passado e um futuro particulares.

O Passado

Para mudar este mundo era necessário demonstrar que ele era mau. Nos filmes épicos de Alexander Dorchenko, Sergei Einsenstein e Zevolov Pudovkin, o passado foi transformado num pesadelo. Era este imagem que facilitava - ao artista e aos espectadores - aspirar a um mundo novo.


Se o passado é um pesadelo terrível, então o futuro esplendoroso torna-se mais brilhante e belo, um futuro que, por enquanto, pode ser vislumbrado apenas em sonhos.

O Sonho

Uma das lendas russas mais conhecidas fala-nos de uma cidade que se situa sobre as águas de um lago e é habitada pelos justos. Afundou-se sob as ondas durante um período conturbado e irá emergir à superfície quando o reino de Deus fôr fundado. Os comunistas russos exprimiam-se exactamente nos mesmos termos que esta lenda. A única diferença era a de designarem o reino de Deus por futuro esplendoroso.


Esse futuro irá acontecer de certeza, o trabalho facilitado, as sementeiras abundantes, a alegria das pessoas... O futuro esplendoroso aproxima-se. Surgirá por si e sem aviso, a única coisa que temos de fazer é arranjar-lhe espaço livre, afastar rapidamente os escolhos. Extinguir a realidade abominável e destruí-la.

Destruição

Realizadores que filmavam avidamente cenas de orgia de destruição ficavam igualmente fascinados com a beleza eterna do mundo. Esta vida é tão boa que a única coisa que resta é morrer. depois da beleza da mãe natureza a existência quotidiana na terra parece quase ofensiva. O ideal russo não aceita, não ama, não dá valor à vida do dia-a-dia. A vida privada, a família, o amor entre um homem e uma mulher... nada disto é abrangido pelos limites do ideal russo. Ele não atribui a menor importância a personalidades individuais. O indivíduo só tem um caminho a seguir: o caminho do sacrifício.

Sacríficio

Está escrito na Bíblia que uma semente que cai à terra tem que perecer se se destina a dar fruto. Nos filmes russos grandiosos o tema do sacrifício convém a um sentido religioso: o herói morre serenamente cosciente e com dignidade pela causa do futuro esplendoroso. Não se trata de um adeus para sempre. No outro mundo, os mártires despertarão, por isso a sua derradeira viagem é tão exultante como os feitos heróicos que realizaram. É como se os bolcheviques fossem Cristo no deserto. O ideal russo é, antes de mais nada, uma concepção religiosa.

A Nova Religião

A Rússia não chegou a ser uma nação burguesa. Isto porque a Rússia nunca deixou de ser cristã ortodoxa, mesmo no maior auge do Estado dito comunista. Os russos sempre tiveram dúvidas quanto a acumular riqueza e ficar confortavelmente instalados na vida. Sempre houve o sentimento de que uma existência ordenada neste mundo era algo para pessoas pérfidas que tinham abandonado a verdade de cristo, ao passo que as pessoas boas aguardavam a segunda vinda e o reino de Deus.


Entre a gente comum, aqueles que buscavam a verdade de Deus queriam que a realidade correspondesse ao cristianismo. Não aceitavam nenhum compromisso para se adaptarem às leis deste mundo. O povo russo concebia a passagem pela vida como um caminho de um viajante e um meio de fugir ao mundo real. Os ocidentais sempre consideraram isso como a barbárie. O povo russo fez todos os esforços para tentar conseguir a salvação de todos. Para a mentalidade russa, a salvação individual é impossível. Só podemos ser salvos em conjunto.


Mais nenhuma cinematografia do mundo foi tão iconoclasta como a soviética em finais dos anos 20 e princípios dos 30. O ateísmo militante deste país tocou as raias da blasfémia e, no entanto, nenhum outro cinema foi tão religioso como o soviético. O povo russo acreditou rapidamente na utopia comunista. Aqui estava finalmente o caminho que iria conduzir, quase da noite para o dia ao futuro esplendoroso. A bandeira e a estrela tornaram-se os novos símbolos de fé. As pessoas acreditavam tanto no comunismo como no advento do reino de Deus.


A substituição dos ícones sagrados pelos do comunismo não se trata de uma blasfémia, antes da introdução de uma nova religião. O cinema russo desse período insinuava provocatoriamente que o reino de Deus já fora fundado na terra.

O Reino

O ideal russo não reconhece o Estado, não está interessado em nações, fronteiras, nem no poder dos governantes terrenos, não busca nenhum reino a não ser o reino de Deus. O Estado, fazendo parte da realidade e sendo em si mesmo uma grande fatia dessa realidade tem de ser abolido e aniquilado. Mas o ideal russo sempre teve propensão para a tentação imperial, como se fosse possível fundar um reino terreno e daí, com um pequeno salto, alcançar-se o reino de Deus. O comunismo russo, em total consonância com o ideal russo, iniciou-se com a destruição do Estado mas ainda mal tinham acabado de o extinguir e eis que já se dedicavam a reconstruí-lo.


Não tardou que o reino comunista se tornasse mais poderoso do que qualquer outro na história da Rússia. A tentação imperial eclipsara o ideal russo.


Os néscios sagrados não reivindicam o poder imperial neste mundo, só podem usar as vestes de czar como um jugo. Na Rússia, o louco sagrado é um homem de Deus e assassinar um desses seres seria um pecado terrível. Aqui o ideal russo entrou em conflito com a concepção do Estado. Um czar deste mundo não corresponde a um homem de Deus.


"Ivan, o Terrível", o último filme de Einseinstein, tornou-se o derradeiro filme do ideal russo. Este filme é o filme que liga duas eras do cinema russo. O ideal russo passa a segundo plano, a concepção do Estado ganha importância, mas isso é outra história da história do cinema.