Ricardo, Coração de Leão
Durante
800 anos a vida de Ricardo, Coração de Leão
deu origem a mitos e lendas. Ele conduziu um exército de
cruzados à vitória contra os muçulmanos na
Palestina. Um dos grandes reis guerreiros de Inglaterra, Ricardo
era patrono dos trovadores que celebravam os seus feitos heróicos
nas canções. Famoso pela sua coragem excepcional,
diz-se que matou um leão apenas com as suas mãos.
Mas, nos últimos 100 anos, os historiadores modernos retratam
Ricardo como um homem sanguinário, que abandonou a Inglaterra
para vencer uma guerra no estrangeiro. independentemente do veredicto
da história, a vida do rei Coração de Leão
esteve repleta de conflitos. lutou contra o pai e os irmãos
para assegurar a sua herança. Desencadeou uma guerra contra
Saladino, líder dos muçulmanos na Terra Santa e lutou
contra o rei francês pelo domínio das suas terras no
ocidente de França.
Ricardo nasceu no dia 8 de Setembro de 1157 no Palácio Real
Inglês, em Oxford. 32 anos mais tarde, foi coroado rei de
Inglaterra, mas não estava destinado à nascença
a herdar o reino. Como segundo filho do rei Henrique, governador
de terras que se estendiam de Inglaterra até ao ocidente
da actual França, Ricardo foi educado na esperança
de herdar apenas uma parte dos vastos territórios pertencentes
ao pai.
As origens angevinas (plantagenetas) de Ricardo
Nas várias histórias e lendas, Ricardo aparece invariavelmente
como um rei inglês, nascido inglês, com uma "saudável"
desconfiança em relação a tudo o que é
francês. Na realidade ele não tinha nada em comum com
essa descrição. os seus pais e avós eram franceses,
ele foi educado em França e falava fluentemente o francês
e o provençal, a língua mais falada na França
ocidental. Pela cultura e educação dos seus antepassados
ele era essencialmente francês.
O pai de Ricardo, Henrique II, era um príncipe francês
que se tinha tornado um dos mais poderosos governantes da Europa Ocidental.
A sua família controlova territórios que englobavam
a Inglaterra, Anjou (que tinha herdado do seu pai e que dava o nome
à sua família, os angevinos), a Normandia e o Maine
(herdados da sua mãe). Possuía também interesses
na Irlanda. Henrique segundo foi Lorde da Irlanda depois de 1771 e
consideradava-se rei da Irlanda apesar de esse título não
ser reconhecido na ilha. Através do seu casamento com Leonor
da Aquitânia era também senhor das terras Sul da
Aquitânia. Isto levava-o a entrar em conflitos constantes com
os reis de França, os Capetos, que nessa altura só detinham
o controlo directo de uma área limitada de França, à
volta da cidade de Paris.
Três anos antes de Ricardo nascer, Henrique II acrescentou o
reino de Inglaterra aos seus territórios. Não era, por
isso, surpreendente que Ricardo visse pouco o pai que abandonou a
Inglaterra para defender o seu território francês após
o nascimento de Ricardo. Henrique esteve afastado durante 4 anos e
meio e a mãe de Ricardo, Leonor, ficou encarregue da sua educação.
É evidente que ele recebeu uma educação de alto
nível. Sabemos que ele sabia compôr canções
e escrever versos em francês e em provençal. para ser
capaz de o fazer é claro que também era capaz de ler
francês. Sabíamos que lia latim porque dizia com frequência
piadas sobre a gramática do latim a um arcebispo de Cantuária
que não tinha tantos conhecimentos como Ricardo. Desta forma,
em termos de estudos tradicionais e de leituras, Ricardo encontrava-se
á altura dos mais cultos príncipes europeus dos seus
dias.
Pouco tempo depois de ter aprendido a andar Ricardo aprendeu a andar
a cavalo. Mais tarde, as caçadas nas florestas reais permitiram-lhe
adquirir as capacidades essenciais de cavalaria para um príncipe
guerreiro da sua época. pouco tempo depois praticava exercícios
militares em cima do seu cavalo. Ao longo de toda a sua vida foi um
participante activo em torneios. Muitas vezes, estes torneios assemelhavam-se
a batalhas fictícias, a campos de treino para a guerra.
A educação de qualidade que Ricardo recebeu fez nascer
nele um certo amor pela música. Ele era patrono de trovadores
que compunham canções de amor. na corte do pai, o jovem
Ricardo ter-se-ia inspirado pelas chansons des gestes, o cancioneiro
dos Francos que celebrava as conquistas heróicas dos primeiros
guerreiros da época medieval. Como homem destinado a governar,
Ricardo aprendeu ainda jogar xadrez, o jogo de interior preferido
na sociedade europeia do século XIII. Naquela altura muitas
pessoas consideravam o xadrez um jogo entre dois reis em miniatura
e que o jogador aprendia a arte de bem reinar como se fosse um rei,
aprendendo a gerir os seus recursos. O xadrez era visto como uma espécie
de exercício sobre os desafios da vida e sobre a forma de os
ultrapassar.
Ricardo tinha três irmãos que haviam sobrevivido à
infância: o seu irmão mais velho Henrique, e os dois
irmãos mais novos, Geoffrey e John. cada um dos quatro rapazes
esperava herdar uma parte dos vastos territórios pertencentes
à família angevina. mas os conflitos no seio da família
eram bastante prováveis, uma vez que o pai, o rei Henrique,
estava relutante em conceder-lhes autoridade real. No entanto, em
1170, reconheceu formalmente que o seu filho mais velho, conhecido
por Henrique junior, herdaria o trono de Inglaterra e o centro das
terras dos angevinos na França Ocidental. Dois anos mais tarde,
Ricardo - segundo na linha de sucessão ao trono - tornar-se-ia
Duque da Aquitânia. Aos 14 anos foram confiados ao jovem guerreiro
a lança sagrada e o estandarte da Aquitânia.
O ducado da Aquitânia cobria uma área enorme de terrenos
ricos e prósperos, especialmente nas zonas onde existiam portos
de mar como Bordéus e La Rochelle. Eram portos a partir dos
quais alguns dos produtos mais importantes comercializados na economia
medieval europeia eram exportados, como o vinho e o sal. A Aquitânia
era a terra ancestral de Leonor, a mãe de Ricardo. Com o seu
primeiro casamento ela havia passado a província para as mãos
da família de reis franceses Capetos. Quando se divorciou de
Luís, o rei de França, para se casar com o rei Henrique
transferiu os seus afectos e o território da Aquitânia
para a família Angevina. este era o motivo antigo de contenda
entre os Capetos e os Angevinos. Assim, quando Ricardo assumiu o governo
da Aquitânia herdou um conflito dinástico, um conflito
que dominou toda a sua vida. Quando as preces do rei de França
foram atendidas com o nascimento de um filho estava montado o cenário
para um conflito entre as duas famílias que iria prolongar-se
pela geração de Ricardo.
O nascimento de Filipe Augustus, em 1165, foi um acontecimento muito
importante na história da dinastia dos Capetos e para o futuro
de Ricardo, Coração de Leão. Após muitos
anos de tentativas finalmente o rei francês tivera um filho,
um herdeiro masculino para perpetuar o poder e o prestígio
da família. No período medieval, uma época muito
militarista, um filho que soubesse manejar uma espada e comandar uma
sociedade masculina era absolutamente vital. Como parte da sua formação
como futuro governante dos territórios dos Angevinos, Ricardo,
ainda adolescente, envolveu-se nas lutas contra os barões desobedientes
nas suas terras da Aquitânia. Em 1179, Ricardo conquistou um
grande castelo na Aquitânia, famoso em toda a Europa Ocidental.
Apesar de se pensar que era inexpugnável acabou por ser dominado.
Duas semanas após a sua chegada às portas do castelo,
Ricardo conquistou-o.
No mesmo ano assistia à coroação do jovem Filipe
como rei de França. Seria o rei Filipe II Augustus. O rei Capeto
e a família de Ricardo, os Angevinos não estavam permanentemente
em guerra. Como em qualquer outro feudo de família, neste as
relações oscilavam entre conflito e reconciliação.
Mas os Capetos prociravam sempre que possível criar problemas
na família dos Angevinos e encontravam muitas oportunidades
nas contendas internas por causa das heranças. Durante uma
dessas disputas, o irmão mais velho de Ricardo morreu com uma
febre. Ricardo, nessa altura com cerca de vinte anos, tornou-se herdeiro
do trono de Inglaterra, sem saber que estava prestes a viver um desafio
ainda maior no Oriente.
A terceira cruzada
Em
1187, verificou-se um acontecimento que modificou a vida de Ricardo.
Na Palestina, o exército do rei cristão de Jerusalém
foi esmagado por forças muçulmanas na Batalha de Hattin.
Em três meses, Jerusalém, a cidade santa que tinha
permanecido na posse dos católicos durante 80 anos, rendeu-se
aos muçulmanos. Um dia, depois de ter recebido as terríveis
notícias,
A terceira
cruzada foi lançada em 1189. Em 1187, os exércitos
muçulmanos, liderados por saladino tinham reconquistado
Jerusalém. Embora de início um grande exército
tenha sido reunido, a terceira cruzada acabou por se revelar
um fracasso no seu objectivo principal.
O Santo Imperador Romano, Frederick I, o barba-ruiva, da Alemanha,
afogou-se em circunstâncias pouco claras a caminho da
Terra Sagrada. Ricardo, Coração de Leão
conseguiu recapturar várias cidades costeiras mas não
recapturou Jerusalém devido à escassez de recursos.
Ricardo conseguiu ainda negociar um tratado de paz com Saladino
que permitia aos peregrinos cristãos entrar em Jerusalém
em segurança.
mais
sobre a cruzada (em inglês)
mais
sobre Guy de Lusignan (em inglês) |
Ricardo
promete liderar uma cruzada para reconquistar Jerusalém.
A queda da cidade santa, o centro do mundo para os cristãos
ocidentais, chocou as famílias reais da Europa. Os seus parentes
encontravam-se entre os barões que lideravam os exércitos
na Palestina e que foram massacrados e a perda de Jerusalém
foi vista como um sinal de castigo divino. Um local como aquele,
que segundo o ponto de vista da época tinha sido libertado,
que tinha sido conquistado para a cristandade, tivesse perdido,
era um desastre por si só, uma ofensa contra o próprio
Deus.
Ricardo, como era típico da sua época partilhava da
mesma opinião, mas havia outros motivos que o levaram a reagir
o mais rapidamente possível. É que, mais do que ter
parentes envolvidos nas cruzadas desde o início, entre os
governantes de Jerusalém encontravam-se os seus primos. O
rei de Jerusalém, Guy de Lusignan que era parente de Ricardo,
tinha sido capturado na Batalha de Hattin. O seu reino tinha sido
invadido pelo exército muçulmano. Ricardo teria que
aceitar o desafio de defrontar o senhor da guerra muçulmano,
saladino. mas passariam cerca de dois anos antes de ele poder partir
na sua cruzada.
Rei de Inglaterra
Havia
mais conflitos em França. Ricardo estava em luta com o seu
pai que se recusava a confirmar a sua herança. Filipe, o
rei Francês, aproveitou-se das divisões no sei da família
de Ricardo. Aquilo que Filipe estava a tentar era apenas causar
problemas, complicar a vida aos Angevinos para os manter permanentemente
no limiar. Quando pensamos na posição de Ricardo no
meio de tudo isto devemos lembrar que ele tinha lutado contra o
pai durante a adolescência e que os seus irmãos haviam
lutado contra ele, e que, por sua vez, também tinham lutado
contra o pai. Não faltavam oportunidades para Filipe se imiscuir
no assuntos de família e, ao fazê-lo, procurava constantemente
desestabilizar o poder dos Angevinos.
O fim surgiu rapidamente para o rei Henrique II, pai de Ricardo.
Quando os filhos de Henrique se revoltavam contra ele, era frequente
terem a assistência militar do rei de França. No Verão
de 1189, em 4 de Julho, Ricardo e Filipe atacam e vencem Henrique.
Ricardo e Filipe levaram Henrique de volta à sua fortaleza
em Chinon. No dia 6 de Julho o rei morreu, supostamente acusando
o seu filho, Ricardo, de traição. Foi sepultado na
Abadia de Fontevraud. Ricardo cumpriu a sua obrigação
perante o túmulo do pai e assumiu rapidamente a herança.
Duas semanas depois era aclamado Duque da Normandia. Atravessou
o canal para Inglaterra e no dia 3 de Setembro, alguns dias antes
do seu 32º aniversário foi coroado rei de Inglaterra
na Abadia de Westminster.
Finalmente, Ricardo dispunha de liberdade para preparar a sua grande
cruzada à Terra Santa. nessa ocasião demonstrou ser
um mestre em logística e planeamento estratégico.
Se no jogo do xadrez é tudo uma questão de gestão
de homens, de recursos militares, de recursos económicos,
de bispos e de castelos e de os manobrar acertadamente para podermos
atingir os objectivos, então podemos ver que Ricardo, que
ficou famoso - sobretudo nas lendas - por ter sido um cavaleiro
corajoso, por ter conseguido abrir caminho através de uma
multidão de soldados muçulmanos, conseguiu-o através
de uma capacidade de organização excelente. Ricardo
e os seus oficiais reuniram uma grande frota nos portos dos angevinos
da Inglaterra e da França para transportarem homens, cavalos,
armas e provisões à volta da costa espanhola e pelo
mediterrâneo. Foi um esforço grandioso para a época
que requeria um planeamento e uma coordenação meticulosos.
Finalmente, no dia 4 de Julho de 1190, Ricardo e Filipe partem na
cruzada. Durante algum tempo a rivalidade entre os Angevinos e os
Capetos foi suspensa. Concordaram em dividir o espólio da
guerra de forma igual entre os dois. Sabemos que Ricardo era dedicado
às cruzadas e que partiu para cumprir a sua obrigação.
Filipe, pelo pouco que sabemos acerca dele, não estaria tão
entusiasmado. Mas ali o que estava em causa era o prestígio.
Quando um partia o outro seguramente devia fazê-lo também.
Algum tempo antes nesse ano foi descoberto um túmulo em Glastonbury
[mais
informação sobre Glastonbury em inglês]
que continha o que se supunha na altura serem os restos mortais
do rei Artur. A lenda diz que foi aí que foi encontrada a
Excalibur, a lendária espada do rei Artur. Levando consigo
a suposta lendária Excalibur na cruzada, Ricardo associava-se
á imagem do guerreiro heróico.
Distanciamento agrava-se entre Angevinos
e Capetos
Ricardo
e Filipe acordaram utilizar a ilha da Sicília como local para
fazerem uma pausa na viagem até à Terra Santa. Ricardo
pretendeu resolver alguns assuntos de família enquanto na ilha.
Tancredo, o rei da Sicília devia-lhe dinheiro. Ricardo parece
ter defendido os seus direitos a essa soma com mais do que mera agressividade.
Também não se encontrava em bons termos com o exército
de Filipe e cada vez antagonizava mais Filipe. Desta estada na Sicília
ficam os relatos de freuqnetes e graves desacatos, desordens e violência
por parte de Ricardo e dos seus homens. Durante meses, Ricardo tinha
planeado cuidadosamente um casamento estratégico que protegeria
os seus direitos da ameaça de um antigo inimigo: o Conde de
Tulouse, que não acompanhara a cruzada. Era previsível
que enquanto Ricardo se encontrava na cruzada o Conde de Tulouse atacaria
a Aquitânia. Assim, por forma a assegurar que a Aquitânia
se mantém segura enquanto se encontra fora, Ricardo procura
um aliado que o ajude a proteger o seu ducado. Ricardo procura, por
isso, casar com Berengária de Navarra. Tem que conseguir um
casamento diplomático, calculado diligentemente por forma a
fazer face à ameaça daquele conde que permanecia no
seu território.
Filipe não ficou nada bem impressionado. Durante anos, o rei
francês tentara persuadir os Angevinos a honrar um compromisso
de que Ricardo casaria com Alice, a irmã de Filipe. O casamento
de Ricardo com Berengária passou por cima de um compromisso
assumido através de um tratado 20 anos antes. Ao quebrar tal
compromisso Ricardo abandonava qualquer expectativa de amizade com
os Capetos. Num rompante de fúria, Filipe abandonou a Sicília
em direcção à Terra Santa. Ricardo partiu imediatamente
a seguir acompanhado da sua futura mulher. Realizou ainda um desvio
a Chipre. Revoltado contra o governante da ilha, que tinha realizado
um pacto com os muçulmanos, Ricardo efectuou uma campanha relâmpago
conquistando a ilha em duas semanas. Em seguida casou com Berengária
na igreja do Castelo de Limmasol.
Ricardo chegou por fim à Palestina. Filipe já havia
chegado alguns meses antes. Na costa, em Acre [mais
informações sobre Acre em inglês], as forças
dos cruzados estavam a atacar uma guarnição muçulmana.
Mas, por sua vez, encontravam-se sob um forte ataque do exército
de Saladino, que procurava levantar o cerco. esta situação
de tensão piorou com as divisões no seio das fileiras
dos cruzados. Entre os cruzados havia dois contendores pelo reino
de Jerusalém. Ricardo apoiava o seu familiar, Guy de Lusignan,
contra o primo de Filipe, Conrad de Monferrat. Foi efectuada uma pausa
na disputa política enquanto os cruzados realizavam os preparativos
finais para dominar a cidade. Entretanto, Ricardo adoeceu com escorbuto
o que fez com que o seu cabelo e unhas caíssem. Apesar disso
insistiu em comandar o cerco da cidade.
Em Julho de 1191, a guarnição rendeu-se. Ricardo e Filipe
tinham conseguido a sua primeira vitória. Mas uma terceira
potência europeia, os Austríacos, tentou reivindicar
uma parte dos prémios. Ricardo e Filipe já haviam concordado
em dividir entre os dois o que tinham conquistado. Eles foram os líderes
do cerco de Acre, por forma a que o espólio de Acre fosse,
de facto, dividido entre os dois. Depois da conquista o duque austríaco,
Leopoldo, coloca o seu estandarte nas ameias da fortaleza da cidade
e reivindica uma parte de Acre por direito de conquista. Os soldados
ingleses retiram o estandarte do Duque Leopoldo da Áustria
mas este vingar-se-á de Ricardo mais tarde. Filipe era um hipocondríaco
e nunca tinha sido feliz com as difíceis condições
do acampamento das cruzadas. Decidiu então dirigir-se para
casa prometendo não atacar as terras de Ricardo enquanto estivesse
em cruzada.
Nos termos da rendição de Acre, Ricardo deveria receber
um prémio elevado das mãos do líder muçulmano,
Saladino, em troca das vidas dos seus prisioneiros. O prazo limite
foi ultrapassado e Ricardo encontrou-se perante um dilema. As pessoas
começavam a desconfiar que Saladino estava a tentar reter Ricardo
em Acre, prendê-lo a Acre. Ricardo, por seu lado, pretende prosseguir
a sua campanha e partir em direcção a Jerusalém.
Poderia partir deixando cerca de 2.700 prisioneiros em Acre sem lhes
dar alimento nem os guardar? A solução de Ricardo foi
implacável. mandou executar todos os 2.700 prisioneiros muçulmanos.
Foi um acto de uma crueldade impiedosa que os historiadores modernos
condenam, apesar de alguns defenderem que Ricardo estava a agir em
conformidade com os valores da sua época. Naquele tempo, no
contexto da Terceira Cruzada, a Igreja pregava que as vidas dos muçulmanos
não deviam ser poupadas, eram infiéis que já
estavam condenados á partida ao inferno pelas suas crenças.
Depois de se libertar de um fardo indesejado e agora que era o líder
inquestionado dos cruzados, Ricardo dirigiu-se para Sul para reconquistar
a Cidade Santa de Jerusalém. Durante a viagem para Sul, Ricardo
demonstrou as suas capacidades excepcionais como comandante militar.
Decidiu avançar apenas á velocidade das passadas dos
soldados de infantaria ao longo de todo o caminho sob um calor intenso
de um Verão mediterrânico sendo frequentes vezes provocados
pelas tropas de Saladino. estes aproximavam-se a cavalo, atiravam
as suas setas e retiravam-se rapidamente. iam buscar mais setas e
voltavam à carga novamente e assim sucessivamente, dia após
dia, o exército de cruzados continuava a avançar. este
avanço, dadas as condições em que se fazia, só
foi possível porque a frota os foi acompanhando ao longo da
costa. Assim, os feridos e doentes eram levados para bordo. recebiam
também reforços para que as tropas pudessem suportar
o esforço desta incrível viagem.
Saladino foi finalmente obrigado a submeter o seu exército
muçulmano ante a certeza de uma batalha em grande escala em
Arsuf. Esta foi uma excelente oportunidade para Ricardo utilizar a
grande arma dos cruzados, o temível ataque de cavalaria. O
sucesso dependia da temporização do ataque para que
se obtivesse o efeito máximo. O domínio de Ricardo desta
força devastadora trouxe a vitória aos cruzados. Em
Setembro de 1191, três meses depois de ter chegado à
Terra Santa pela primeira vez, Ricardo conquistou a cidade de Jaffa,
situada mais a Sul, na costa, e passou o ano sguinte a defender o
seu domínio no Sul da Palestina. por essa altura já
se tinha tornado famoso entre os muçulmanos. Uma citação
de um texto muçulmano: "Este Senhor é maldito.
Para atingir os seus objectivos, utliza por vezes palavras brandas
e noutras actos violentos. Só Deus pode salvar-nos da sua malícia.
jamais tivemos que enfrentar um inimigo tão subtil ou audaz".
Em duas ocasiões Ricardo esteve perto de Jerusalém mas
a sua posição nunca foi suficientemente forte para dominar
a cidade. As suas linhas de abastecimento para a costa encontravam-se
extremamente vulneráveis ao perigo de um ataque muçulmano.
A lenda conta que numa determinada ocasião ele avistou a Cidade
Santa e tapou os olhos para evitar a vergonha de ter visto a cidade
de Jerusalém e não a ter reconquistado.
O
regresso à Europa
Em Abril de 1192, recebeu notícias preocupantes de Inglaterra.
O seu irmão mais novo, John, e Filipe, rei de França,
estavam a causar problemas e se uma conspiração fosse
permitida era legítimo esperar que, enquanto ele estava na
Palestina, toda a Inglaterra, toda a Normandia, talvez também
Anjou, seriam perdidas. Ele tinha que regressar.
Na altura em que Ricardo recebeu as más notícias já
se encontrava em negociações com os muçulmanos.
As tréguas foram negociadas em setembro de 1192. partes da
costa permaneceriam em poder dos cristãos e os peregrinos
cristãos poderiam visitar Jerusalém. Os feitos de
Ricardo, apesar de a cruzada não ter atingido o seu objectivo
máximo, foram imensos. Ele sentia-se profundamente mal por
não ter podido reconquistar Jerusalém. A sua conquista
mais importante foi a recuperação da costa. A frota
de galés egípcia entretanto estava confinada ao porto
e não podia fazer nada. A conquista de Chipre por Ricardo
contribui igualmente para fornecer ao reino de Jerusalém
uma eficiente linha de comunicação com o Ocidente.
Antes de Ricardo regressar à Europa, a disputa permanente
sobre quem seria o governante do reino de Jerusalém sofreu
uma viragem dramática. Ricardo tinha finalmente concordado
com a nomeação do seu inimigo político, Conrad
de Montferrat. Apesar de ser um combatente respeitado, Conrad tinha
sido inimigo de Ricardo durante décadas. Na noite de 28 de
Abril de 1192, Conrad foi assassinado quando voltava a casa depois
de um jantar. Não havia provas directas do envolvimento de
Ricardo mas a hora a que fora cometido o assassínio era suspeita.
Ricardo encontrava-se numa situação em que um inimigo
seu iria governar a Palestina e as suas outras amplas conquistas.O
facto de um inimigo dinástico do rei de Inglaterra governar
a Palestina pode parecer algo bastante distante actualmente uma
vez que a Terra Santa ficava a mais de 3.000Km das terras de Ricardo
mas isto não tem em conta o significado que a Palestina tinha
para as pessoas na época. Seria uma grande humilhação
para o trono inglês e para os esforços diplomáticos
ingleses, se se viesse a concretizar.
A detenção
Assim, Ricardo abandonou a Palestina envolto numa nuvem de suspeitas.
partiu do porto de Acre em outubro e os cronistas contemporâneos
relatam que os ventos o afastaram da sua rota e separaram da sua
frota e que, após repelir os ataques de piratas, o seu barco
naufragou na costa norte adriática. Na prática encontrava-se
em território inimigo. para chegar a Inglaterra teria que
atravessar terras que pertenciam aos familiares de Conrad que tinha
sido assassinado e, segundo a suspeita geral, por ele próprio.
Conrad era primo de Leopoldo da Áustria e do Imperador Henrique
VI da Alemanha, tendo também laços familiares com
Filipe de França. Os Montferrats eram de facto uma família
muito importante.
Como cruzados, Ricardo e os seus colegas teriam estado sob a protecção
da Igreja mas disfarçaram-se de mercadores para evitar que
descobrissem as suas identidades. Porque será que ele decide
viajar disfarçado depois de chegar a terra? À primeira
vista não faz sentido nenhum. Este facto só faz sentido
se ele soubesse que estaria a viajar por uma Europa revoltada com
razão pelo assassinato de Conrad e que os familiares deste
o iriam perseguir. ou seja, ou Ricardo seria culpado do assassinato
de Conrad ou tinha sido habilmente inculpado desse facto. Os acontecimentos,
porém parecem indicar que Ricardo seria o assassino de Conrad.
De qualquer forma, Ricardo quase conseguiu escapar mas ao chegar
a Viena acabou por ser capturado por tropas austríacas.
Ricardo encontrava-se, assim, nas mãos dos familiares de Conrad,
mais especificamente de Leopoldo da Áustria. O homem cujo estandarte
tinha sido retirado pelos homens de Ricardo após a conquista
de Acre.
Ricardo foi levado para o castelo isolado de Durnstein, nas margens
do Danúbio. O herói das cruzadas passou a ser um refém
para pagar um regaste de um rei. A notícia da detenção
de Ricardo por Leopoldo da Áustrai demorou vários meses
a chegar a Inglaterra (segundo a lenda de Londel, um trovador andava
á procura dele viajando por toda a Alemanha a cantar o primeiro
verso de uma canção que o seu amo real reconheceria.
Após algumas semanas de busca finalmente encontrava-o).
Leopoldo tinha consciência do valor do seu prisioneiro real
e chegou rapidamente a um acordo com Henrique VI, imperador da Alemanha.
vender Ricardo contra uma parte do dinheiro do resgate. Ricardo esteve
presente num julgamento perante a corte imperial acusado do assassínio
de Conrad de Montferrat na Palestina. Apesar de Ricardo ter conseguido
influenciar o imperador com um forte discurso, foi mantido preso aguardando
o pagamento de um enorme resgate. As exigências do imperador
Henrique VI em relação ao resgate de Ricardo eram de
150.000 marcos, uma quantia astronómica para aquela época.
por fim, a administração inglesa pagou "apenas"
100.000 marcos. Esta quantia convertida em libras dava mais de 66.000
libras, mais de três vezes a receita anual do orçamento
real. o esforço que resultou deste resgate para a economia
inglesa foi enorme e também para os súbditos de Ricardo.
Não é de admirar que existam bastantes reclamações
pelas dificuldades económicas que isto implicava. Este esforço
veio a reflectir-se também na relação dos súbditos
ingleses com John, o irmão de Ricardo, que nas lendas aparece
como um rei despótico que aumentava constantemente os impostos
e explorava os súbditos ingleses em proveito próprio.
Ricardo permaneceu preso enquanto os seus oficiais reuniam o resgate.
Enquanto Ricardo é mantido em cativeiro, o seu irmão
João luta contra o antigo rival de Ricardo, o rei de França.
O que João desejava realmente era herdar a coroa de Inglaterra,
usurpar o que pertencia ao irmão, tanto na Inglaterra como
nas demais terras dos Angevinos. Para isso contava com a ajuda de
Filipe. Ricardo era mais do que um grande guerreiro tendo-se revelado
um especialista em estratégia. Mesmo no cativeiro servia-se
das suas habilidades diplomáticas para combater a ameaça
dos seus inimigos. Em muitos aspectos ele tinha que continuar a manipular
o tabuleiro do xadrez político europeu enquanto estava na prisão
porque era do interesse de Filipe e de João manterem-no preso
e estavam preparados para pagar uma enorme quantia em dinheiro ao
imperador para manter Ricardo preso. O que ele tinha que fazer era
conseguir diminuir as relações do imperador com o lado
oposto e o que ele acabaria por conseguir fazer foi reunir uma alinaça
dos príncipes alemães para convencerem o imperador de
que ele tinha razão. É evidente que o imperador só
veria a razão se esta lhe trouxesse alguma vantagem financeira.
A
lenda de Robin
Finalmente, na Primavera de 1194, Ricardo foi libertado depois de
mais de um ano de cativeiro. Dirigiu-se para Inglaterra lançando
o pânico no seio dos apoiantes de João. Diz-se que um
dos barões que se tinha revoltado morreu de susto ao ouvir
que Ricardo havia sido libertado. Um dos primeiros actos de Ricardo
foi reforçar a sua autoridade real através de uma segunda
coroação, desta feita na Catedral de Winchester. Ricardo
foi apelidado de rei ausente, deixando o país num limbo sem
uma liderança forte. Esta perspectiva tem origem nas lendas
que surgiram vários séculos após a sua morte,
principalmente a ligação entre Ricardo e outro herói
inglês, Robin dos Bosques.
Na lenda de Ricardo, a coisa mais importante é a sua imagem
nas cruzadas e o seu duelo com Saladino, que inevitavelmente concentrou
sobre ele as atenções num raio de muitos quilómetros
de distância. O povo inglês precisava de alguém
que tomasse conta dele na ausência do rei e assim surge a lenda
de Robin dos Bosques. É uma lenda que, de certa forma, mostra
Robin a fazer aquilo que o rei ausente falha em fazer. A imagem de
Ricardo o rei ausente não tem em conta o lugar de Inglaterra
nas terras de Ricardo. O maior desafio á sua autoridade residia
no ocidente de França.
Últimos
anos e morte
Ricardo deixou a Inglaterra em Maio de 1194 desconhecendo que nunca
voltaria a ver o país onde nascera. Estava então pronto
para defrontar Filipe II Augustus, o rei de França, que tinha
invadido uma parte do território de Ricardo quando ele estava
preso. tratava-se de uma guerra de famílias cuja intenção
era minar o poder do adversário, dominar o seu território,
obter pequenos ganhos que poderiam depois vir a ser bastante aumentados.
Do ponto de vista de Filipe, como rei de França e governante
de Paris, o pormenor mais aborrecido era o facto de o grande rio que
liga Paris ao mar, atravessar a Normandia. Filipe pretendia dominar
o Vale do Sena e essa parte da Normandia. Pretendia conquistar Ruão.
Foi nesta área do Vale do Sena que decorreu o maior conflito,
que implicou uma troca - quase a um ritmo semanal - do domínio
dos castelos.
Foi nesse local que Ricardo decidiu construir a sua grande obra-prima
de arquitectura militar: Chateau Gallaird. Este enorme castelo bloqueava
a rota que Filipe teria que seguir se pretendesse conquistar Ruão
e o resto do Vale do Sena. Servia ainda de base a partir da qual Ricardo
poderia recuperar as terras que tinha perdido. A luta entre Ricardo
e Filipe prolongou-se por mais cinco anos. Cerca de Março de
1199, Ricardo encontrava-se numa posição forte em relação
ao seu antigo rival. Foram negociadas tréguas que garantiam
mais um ano de paz. Ricardo dirigiu-se então para a sua adorada
Aquitânia. Alguns historiadores pensam que para dominar os barões
insubordinados, outros afirmam que procurava um tesouro antigo.
Segundo uma das versões Ricardo teria seguido para Sul porque
fora informado da existência de um tesouro maravilhoso que fora
descoberto nas terras do Senhor de Limousin. Segundo outra versão,
Ricardo partiu para Sul porque o visconde de Limoges e o conde de
Angrouème estavam a organizar uma revolta.Tinha sido precisamente
contra estes dois grandes senhores que o duque da Aquitânia,
no passado, tinha tido que pôr em prática todos os seus
esforços no sentido de os governar mantendo o controlo sobre
eles. Filipe, no contexto da sua inimizade contra a casa angevina,
tinha instigado insistentemente o visconde de Limoges e o conde de
Angrouème para desfazerem os laços de vassalagem com
o duque da Aquitânia e para se aliarem a ele.
Ricardo lançou um ataque contra os rebeldes que estavam detidos
num castelo de Châlus-Charbrol em Limousin. Ricardo, como era
seu hábito, participava pessoalmente na condução
da guerra. Um certo dia saíu para inspeccionar as paredes do
castelo. Aproximou-se o suficiente para estar ao alcance de um besteiro
que se encontrava numa das ameias do castelo. Pierre Basile era o
besteiro que disparou contra Ricardo, um dos únicos dois cavaleiros
que defendiam o castelo. Basile disparou e Ricardo foi ferido num
ombro. Os médicos foram chamados com urgência e fizeram
o seu melhor para remover a flecha mas fizeram um mau trabalho pois
a ferida acabaria por gangrenar.
Nestas ocasiões, como é comum, surgiram boatos de que
talvez esta intervenção inepta dos médicos fosse
uma garantia para alguém de que o duque da Aquitânia
ia morrer. É evidente que a morte de um rei num local tão
distante, num local quase desconhecido, numa situação
que nem sequer era a de uma guerra muito importante entre reis ou,
pelo menos, não era vista como tal leva a concluir que os boatos
sobre qualquer tipo de conspiração seriam infundados.
A maior parte das pessoas foi levada a concluir que Ricardo morreu
porque desobedecera aos médicos. Não descansava aquando
da recuperação e os cuidados com a higiene podem também
ter sido deficientes. Consta também que na sua convalescença
pedia que lhe trouxessem mulheres aos seus aposentos. Sabemos que
há uma outra versão dos seus últimos dias em
que Ricardo teria insistido para que trouxessem perante ele o besteiro
que disparou a flecha que o ferira. Quando o homem, que não
podia esperar mais nada senão a morte, surgiu ao lado da cama
do rei sem qualquer receio pelo acto que tinha cometido, Ricardo admirou
a sua atitude e ordenou que a sua vida fosse poupada. O desejo do
rei foi mantido apenas enquanto se manteve vivo. Após a morte
de Ricardo, Mercadier, um guerreiro ao serviço de Ricardo,
ordenou que Basile fosse esfolado vivo e posteriormente enforcado.
Quando se tornou evidente que a gangrena se tinha espalhado e que
a morte de Ricardo se aproximava, foram-lhe dados os sacramentos finais.
A sua mãe, Leonor, estava presente. O seu filho preferido,
um rei no esplendor das suas capacidades morreu com 42 anos. O corpo
de Ricardo foi levado para a Abadia de Fontevraud e foi sepultado
aos pés do seu pai, o rei Henrique. Assim, reconciliaram-se
na morte. Mas o casamento de Ricardo não tinha dado origem
a nenhum herdeiro. A sucessão passou para o seu irmão
João, aquele que tinha traído Ricardo quando ele estava
preso. Passado 5 anos, joão tinha perdido a maior parte da
herança angevina para o antigo inimigo de Ricardo, o rei de
França. Assim, a estrutura política e o legado que Ricardo
tinha conseguido com tanta ferocidade e dificuldade desmornou-se rapidamente
nas mãos de João, em quem ninguém confiava à
partida.
Numa época que celebrava as proezas dos seus guerreiros, os
cavaleiros da Idade Média, Ricardo em breve se encontraria
nas fileiras dos principais heróis lendários. Torna-se
muito rapidamente uma figura lendária durante a sua vida mas
conseguiu sê-lo também depois da sua morte e acabaria
por ser visto como o rei modelo: prudente, inteligente, um grande
guerreiro e generoso.
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