Introdução à História dos Cátaros
Quarta-feira,
16 de Março de 1244, aos pés de um penhasco da região
de Ariège (Midi-Pyrenees) nos Pirinéus, 225 homens
e mulheres são entregues à fogueira. O seu crime?
Eram Cátaros. Entrincheirados na povoação fortificada
de Montségur, a 1.200 metros de altitude, e capturados após
dez meses de cerco tinham-se recusado a abjurar a sua fé.
O fenómeno
Cátaro estendeu-se por toda a Europa Ocidental desde o Norte
da Itália até à Borgonha, à Champagne,
à Renânia, à Flandres e até mesmo à
Inglaterra. No Norte a repressão foi tão rápida
e violenta que nem deu tempo para que se implantasse qualquer tipo
de organização. Em Itália, em contrapartida,
o movimento desenvolveu-se durante muito tempo em total liberdade.
O mesmo se passou no Languedoc, mas aí a aventura Cátara
haveria de desembocar no maior drama jamais conhecido por estas
partes da Europa.
A sociedade
feudal é uma sociedade em pirâmide. Divide-se em três
ordens e na base estão os que trabalham, todo o povo de camponeses
e artesãos. Na ordem imediatamente acima ficam os que combatem,
guerreiros e nobreza. No topo os que rezam: o clero. Esta sociedade
foi abalada, ao longo dos séculos XII e XIII por surtos de
dissidência religiosa e contestação que, conscientemente
ou não, faziam perigar esta ordem tradicional. Fogueiras
e forcas tentaram em vão erradicar as heresias, nomeadamente
a mais importante de todas, a dos Cátaros.
A igreja
de Roma não podia aceitar que se rejeitasse a autoridade
do seu clero, especialmente numa altura em que essa autoridade ainda
se estava a afirmar: o valor dos seus sacramentos e os artigos fundamentais
do Dogma respeitantes à criação, a Cristo e
à Salvação. Por mais de dois séculos
a Santa Sé empenhou-se na luta contra a Hydra Innumera: o
dragão da heresia Cátara.
Para
os Cátaros Deus era a origem de todas as coisas. Mas, ao
contrário dos católicos que entendiam a dualidade
Bem e Mal como algo externo a Deus, sendo este a fonte do Bem, os
Cátaros entendiam que ambos, Bem e Mal, emanavam de Deus.
Deus era o criador de todas as coisas e como tal não se devia
procurar a origem do Mal numa outra entidade. Rejeitavam assim o
conceito de satanismo ou a existência de entidades de onde
emanasse o mal. Os Cátaros, de qualquer forma, dissociam
o Bem do Mal, o material do espiritual. E toda a sua crença
gira em torno desta dualidade entre espírito e matéria.
Os
Cátaros chamavam a si próprios "bons cristãos"
ou "bons homens". Existia uma distinção
entre aqueles que recebiam o Consolamentum, uma espécie de
ordenação, e os cristãos normais. O grupo dos
"ordenados" constituía a hierarquia cátara
onde se incluiam os prefeitos que, usualmente, pregavam aos pares:
o "filho mais novo" e o decano.Havia um ou vários
"filhos mais novos" que se tornavam prefeitos itinerantes
e coordenados por um bispo que tinha à sua responsabilidade
uma determinada área geográfica restrita. Nas vésperas
da cruzda anti-cátara havia seis bispados: Agen, Lombers,
Saint-Paul, Cabaret, Servian et Montsegur. Entre as "decanonis"
mais importantes havia Moissac, Cordes, Toulouse, Puylaurens, Avignonet,
Fanjeaux, Montréal, Carcassonne, Mirepoix, Le Bézu,
Puilaurens, Peyrepertuse, Quéribus, Tarascon-sur-Ariège.
Os
Cátaros não admitiam que o mundo vísivel, por
muito belo que pudesse parecer, tivesse sido criado por um bom deus.
Se a Igreja de Roma podia considerar-se satisfeita pela maneira
como a repressão fora conduzida nos países do Norte
aqui tinha pela Frente um grave problema. A sólida implantação
da heresia cátara em França e nas cidades italianas.
No fim do séc. XII e início do XII a base social do
catarismo é já muito vasta. Toca já todos os
sexos e classes sociais inclusivamente os grandes sonhores rurais.
O catarismo era um grande fenómeno social na nobreza local.
Uma vez que o papa tinha ordenado a confiscação de
todos os bens e a morte dos heréticos e dos seus cúmplices,
esta só era possível com uma grande cumplicidade social.
O Conde
de Toulouse era então Raimundo VI. Era um grande senhor na
medida em que administrava territórios mais vastos que muitos
reinos da época. Possuia terras mais vastas que o próprio
rei de França. Mas Raimundo VI tinha um carácter pacífico
e tolerante o que na época não era considerado uma
virtude num nobre especialmente pela Igreja. A Igreja pensa que
um senhor deve saber impor a sua autoridade e a sua fé a
todos os homens e mulheres que vivem sob a sua autoridade. Mas Raimundo
é um homem que respeita a fé dos outros e que sente
pelos cátaros alguma simpatia, mesmo não sendo cátaro
e acreditando mesmo em ideias muito contrárias ao que os
cátaros pregam. É um homem que gosta do amor e das
mulheres. Teve várias mulheres. Por morte de algumas e porque
abandonou outras, tinha amantes, filhos legítimos e ilegítimos.
Se isto era escandaloso aos olhos da Igreja, aos olhos dos cátaros
o seu comportamento era uma abominação. Mas, apesar
de tudo, ele respeitava-os e protegia-os.
Houve,
entretanto, um homem que tinha tentado combater pacificamente os
cátaros e a sua religião dualista: um jovem cónego
castelhano, o futuro S. Domingos. Alguns anos antes, Domingos obtivera
do papa o reconhecimento da Ordem dos Frades Pregadores. S. Domingos
nas suas viagens pela Europa fica tão chocado com a falta
de liberdade de expressão como com a forma como o verbo é
usado pelos vários povos europeus: com a espada. Defendia
que a melhor forma de converter as pessoas ao catolicismo era pela
força da palavra, pelo poder da expressão. E é
assim também que encara as cruzadas e a luta contra a heresia,
nomeadamente a cátara. Os êxitos de S. Domingos no
combate à heresia cátara foram reais mas limitados.
E, seja como fôr, não impediram a cruzada.
Esta
guerra, contra os cátaros, que o rei de França não
queria vão ser os barões do Norte a fazê-la.
Normandos, flamengos, da liga de França, da Borgonha, Champagne
e ainda alemães, bávaros e austriacos. Um exército
maravilhoso e grande, como cantava um poeta da época. No
comando um chefe temível: Simon de Monfort. Simon de Monfort
é um guerreiro, um homem vigoroso que tem o sentido da batalha
e o sentido estratégico mas é um Senhor modesto que
possui apenas algumas propriedades na zona de Paris. Um homem com
uma fé profunda mas também um homem demasiado brutal.
Ora, acontece que uma lei papal dizia que a terra conquistada pertencia
a quem a conquistasse (pagando alguns tributos à Igreja)
e as terras cátaras era muito interessantes devido às
construções aí edificadas e ao comércio
mediterrânico a que davam acesso. Eram por isso terras ricas
e cultivadas, terras que fascinam potenciais senhores. Para lém
do desejo natural que Simon de Monfort poderia ter tem uma outra
coisa que outros não possuiam para o colocar na posição
de escolhido para tomar as terras do Sul de França: a benção
da Igreja.
Mais
tarde Simon de Monfort exorta os católicos da região
a abandonarem a sua terra, abandonarem os heréticos antes
que o seu exército avance. O conselho da terra reune e os
habitantes da região decidem - católicos e cátaros
- que não abandonam as suas terras e que, sobretudo, não
estão interessados em mudar de senhor.
A guerra
vai infligir um rude golpe à sociedade cátara mas
também à sociedade da Aquitânia e do Languedoc
no seu conjunto: católicos e cátaros à mistura.
Não será apenas em Béziers que será
massacrada gente que se calhar nunca tinha ouvido falar da heresia.
Promovido a Visconde de Carcassone três semanas depois do
massacre de Béziers, Simon de Monfort consegue em apenas
três anos isolar completamente Toulouse. Em 1215, o IV Concelho
Ecuménico do Latrão, a maior assembleia reunida até
então pela cristandade romana renova solenemente a condenação
da heresia cátara, reforça o direito repressivo, destitui
Raimundo VI e outorga os respectivos títulos e domínios
a Simon de Monfort. Será, no entanto, preciso muito mais
que a guerra e os concílios para restaurar a unidade da Igreja,
impôr a todos o baptismo católico e acabar com o baptismo
de espírito dos heréticos. Os cátaros diziam
que Cristo se ensombrou, escondeu a sua luz celeste à sombra
da forma humana: "Senhor não tenhas piedade da carne
mas sim da alma que ela retém como prisioneira".
Num
belo dia de 1217, passando a vau o Garona, Raimundo VI consegue
reentrar em Toulouse. Congrega em seu redor uma população
numerosa que se subleva imediatamente e reconstrói as muralhas
arrasadas pelos franceses. Nove meses mais tarde, ao cercar a cidade
rebelde, Simon de Monfort tomba para sempre com a cabeça
esmagada por uma bala de catapulta disparada por mulheres. "E
a pedra caiu a direito onde devia cair. Em cheio no elmo de aço
do conde acertou. E os olhos, miolos, dentes, fronte e queixada,
tudo num ápice saltou. Caiu por terra. Morto. Lívido.
Ensanguentado". O grande poema da Aquitânia, a canção
da cruzada, retrata a alegria que se apossou da população
de Toulouse e a dor que se abateu sobre o campo dos cruzados. A
morte de Simon de Monfort é o sinal que faz disparar a guerra
de libertação.
Os
actores que sobram são Raimundo VI, o velho conde, Raimundo
VII, seu filho e o jovem conde de toulouse, e o filho de Simon de
Monfort: Amouris de Monfort. Há uma diferença enorme
de personalidades entre Raimundo VII e Amouris. Raimundo VII era
muito combativo, enérgico e tinha sido o primeiro homem a
provocar uma derrota a Simon de Monfort enquanto que Amouris de
Monfort era um homem sem a capacidade militar de seu pai. Numa determinada
altura Amouris encontra-se com o rei de França e devolve
todos os títulos e propriedades recebidas do rei. E, nessa
altura, a guerra muda de natureza. Nos próximos anos a guerra
de libertação religiosa transforma-se numa guerra
de conquista de bens e propriedades para a coroa francesa.
Mas,
por enquanto, a contra-ofensiva do Sul marca pontos. E a igreja
cátara levanta de novo a cabeça por todo o lado. O
quotidiano das prefeitos cátaros é uma vida comunitária,
não encerrada em claustros mas vivida em casas situadas no
coração das vilas e aldeias. À imagem dos apóstolos
trabalham mesmo quando são de nascimento nobre o que entra
em ruptura total com a sociedade feudal. O prefeito cátaro
é um religioso que observa uma regra mas que também
tem almas a seu cargo. É ao mesmo tempo um monge e um cura
de paróquia.
Tal
como na quaresma católica, o peixe ficava de fora das proibições
alimentares. Acreditava-se então que nascia dentro de água
por geração espontânea. Os cátaros rejeitavam
o sacramento da Eucaristia. Para eles a hóstia não
passava de um simples pedaço de pão. Jamais poderia
ser o corpo de Cristo. No entanto, em memória da última
ceia abençoavam ritualmente o pão quando o partilhavam.
À
data da morte de S. Domingos, em 1221, os conventos Dominicanos
já se tinham multiplicado por toda a Europa Ocidental. De
Toulouse a Paris, de Valência a Bolonha.
Em
1227, a cruzada real está em marcha e pela frente encontram
um país exangue devido a dezassete anos de guerra. Imediatamente
a seguir à derrota da Aquitânia, em 1229, a Igreja
Católica faz o balanço. Era necessária uma
instituição que se encarregasse sistematicamente de
reprimir e suprimir os heréticos. É a Inquisição
que passa a exercer funções desde 1233 e que se encarrega
desta missão. A Inquisição não só
será totalmente independente do poder militar e político
como também é totalmente independente das arquidioceses
locais. Não sepende senão do Papa e de si mesma. A
Inquisição é entregue aos Dominicanos pois
estes são opositores teológicos dos cátaros.
O catarismo
não era a primeira heresia que atacava a Igreja. A Igreja
sempre tinha sabido desenvolver novos anti-corpos. O trabalho da
Inquisição vai ser o de um confessionário obrigatório
itenerante. Os inquisidores não são muito numerosos
e a inquisição não é uma instituição
rica, sobretudo no seu inicio. Os inquisidores têm diante
de si uma tarefa imensa. Têm que passar por todas as localidades,
cidades, vilas e aldeias e interrogar as pessoas. Assim, a Inquisição
terá que funcionar como um tribunal itinerante. Todas as
confissões eram tratadas como confissões em sede de
justiça. Os documentos eram devidamente preservados, e por
vezes copiados ou recopiados para serem enviados para outro local
onde teriam melhor guarda ou onde se poderia dar seguimento com
celeridade ao processo. Todo o trabalho tinha como objectivo conseguir
descobrir quem eram os ministros heréticos de qualquer seita
e afastá-los.
Mas
no Languedoc a tarefa da Inquisição não foi
fácil pois as populações eram particularmente
hostis ao seu trabalho. A violência das populações
reflecte a vontade existente de fazer surtidas para roubar os documentos
conseguidos pelos Inquisidores. Foi o que aconteceu em Avignonet
durante a noite da Ascensão de 1242. Era de Montségur
o comando que tinha descido para assassinar os inquisidores em Avignonet.
Alpendurado a 1.200m de altitude sobre um esporão dos Pirinéus,
Montségur é, por excelência, o símbolo
emblemático do drama cátaro. Pequena localidade fortificada
erguida à medida das necessidades da igreja cátara
servia de refúgio à hierarquia que fugia da cruzada
e da Inquisição. Mais de 200 prefeitos e prefeitas
e outros tantos laicos, entre os quais uma guarnição
de uma centena de homens, tinham-se aí instalado.
Um
ano após o massacre de Avignonet, o exército real,
apostado em cortar a cabeça do dragão apertava o cerco
a este sítio. A praça forte não se rendeu senão
ao fim de dez meses. Após o massacre das duzentas pessoas
em Montségur, há registos de cátaros, fossem
da hierarquia ou laicos, que fogem e se refugiam na Itália,
sobretudo na Lombardia. A paz que aí encontram não
dura muito.
As
hierarquias cátaras acabam por se verem constrangidas ao
reduto fortificado de Cirlien. Cirlien será um novo Montségur.
Assediada a praça rendeu-se a 1276 e duzentos prefeitos e
prefeitas foram queimados. Nos Balcãs, em contrapartida,
a heresia dualista, transformada em religião de Estado na
Bósnia mantém-se até à conquista turca
no século XV. Recusando aliar-se, tanto à Igreja de
Roma como à Igreja Ortodoxa, os bósnios, se bem que
de etnia eslava, passam para o Islão. Os seus descendentes
são os actuais muçulmanos da Bósnia.
O exílio,
a prisão, a morte. A Inquisição no Languedoc
quase conseguiu atingir inteiramente o seu objectivo. Podia julgar-se
a heresia cátara completamente erradicada quando em 1300
aparece no condado de Fois um prefeito de verbo afiado, Pierre Auhtier.
"As
igrejas são as casas dos ídolos porque as estátuas
dos santos que lá existem são apenas ídolos
e todos aqueles que adoram ídolos são idiotas pois
foram eles próprios que os modelaram com uma chave e outros
utensílios de ferro".
Em
1300 qualquer coisa tinha mudado. A pregação de Pierre
Authier já não alcançava êxito junto
dos nobres e dos burgueses. Nesta altura, ao invés do que
se passava nos primeiros tempos do catarismo, a heresia dualista
colhe mais adeptos junto dos camponeses e das massas de trabalhadores.
O catarismo torna-se uma religião popular. Pierre Authier,
em 1284 é um homem sem problemas. Trabalhava para o Conde
de Fois e tinha uma carreira promissora. Um dia, após uma
conversa com o seu irmão Guillaume sobre a heresia descobre
em si uma vocação cátara e resolve partir da
região para a Lombardia onde encontra comunidades cátaras.
Durante quatro anos fica na Lombardia a estudar o catarismo e ao
fim desse tempo torna-se prefeito. Poderia ter ficado na Lombardia
e continur aí a sua pregação. Mas decide voltar
à região de Fois. Durante dez anos quase não
vê a luz do dia uma vez que vive escondido em caves e grutas.
Anda um pouco a pé apenas durante a noite e é à
noite que faz os seus percursos das viagens que precisa fazer. Isto
leva-o a ficar doente e fraco. E, no entanto, executa a sua decisão
de voltar a Fois com uma força e uma fé extraordinárias.
É verdadeiramente o último grande personagem do catarismo
antes de Bernard Guy, o grande inquisidor tomar em mãos a
tarefa de exterminar a heresia dualista.
Graças
aos registos de Jacques Fournier, os registos da vida de certas
aldeias é conhecida em todos os seus pormenores quase diários.
Este cistersiense, bispo de Parmier foi um inquisidor fora do vulgar
com uma paciência e uma curiosidade sem limites.
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