As Múmias dos Chinchorros
O
deserto de Atacama, a Norte do Chile a Leste da Cordilheira de Domeyko,
é o lugar mais seco à face da Terra. Estende-se desde
o sopé dos Andes, numa faixa de 150Km para Leste, até
à orla do Oceano Pacífico. Poucos sinais de vida ali
existem e, em certas zonas, não chove há já
milhares de anos. Mas foi a própria secura do Atacama que
fez dele o guardião perfeito de um tesouro único Enterrados
nas areias encontram-se os segredos íntimos de um velho mundo,
o legado de um povo da Idade da Pedra que acreditava ser capaz de
vencer a morte.
A cidade de
Arica, na costa do Pacífico junto da fronteira do Chile com
o Peru nos limites do deserto Atacama, foi em tempos uma pequena
aldeia piscatória. Viver dos alimentos que o oceano dá
é para a população local uma tradição
que se perde no tempo. É um modo de vida que fixou neste
local os primeiros povoadores e que tem sustentado, desde então,
os naturais da terra.
Tornou-se bem
claro há quanto tempo existe neste local população
humana em 1983, quando uma sensacional campanha de escavações
deixou a descoberto um antigo local de enterramentos nos arrabaldes
da povoação. Os corpos e os artefactos aqui enterrados
confirmaram que há 9000 anos este povo também vivia
do mar. Mas a escavação revelou ainda algo de muito
mais surpreendente. Os 96 corpos enterrados em camadas tinham sido
todos mumificados. Eram as múmias mais antigas do mundo.
A mais antiga tinha quase 9000 anos.
Uma remota comunidade
de pescadores da América do Sul tinha praticado a arte da
mumificação antes mesmo do nascimento da civilização
e pelo menos 2000 anos antes dos lendários preparadores de
múmias do antigo Egipto.
Já
há algum tempo que se sabia que um povo antigo vivera outrora
na costa de Atacama, na extremidade do deserto. Foi-lhes dado o
nome de Chinchorros da palavra espanhola para designar uma pequena
rede de pesca em forma de bolsa (hoje em dia a palavra chinchorro
designa quer as redes em forma de bolsa para pesca, quer as redes
de prender a dois suportes onde se pode dormem os warao, uma etnia
sul-americana. É assim, uma palavra que pode ter um significado
muito preciso ou que pode ser usada para significar "rede"
de uma forma genérica). Algumas destas bolsas foram encontradas
enterradas junto dos seus possuidores nas sepulturas dos Chinchorros.
O estilo de vida deste povo era muito primitivo. Não conheciam
os metais nem a cerâmica, nem a roda ou mesmo os animais de
carga. Não deixaram quaisquer sinais de escrita nem construções
duradouras. Eram muito simplesmente um povo da Idade da Pedra.
Mas a maneira
como tratavam os mortos era tudo menos simples. Os Chinchorros mumificavam
todos os seus mortos sem olhar a posição social: homens,
mulheres e crianças. E o mais estranho é que as múmias
não eram logo sepultadas, antes eram mantidas em exposição
junto dos vivos.
Desde a descoberta
de Arica em 1983 que a investigação sobre os Chinchorros
se tem desenvolvido imenso atraindo a curiosidade de investigadores
de outras áreas que não a arqueologia e a antropologia.
Neste momento estamos apenas a começar a compreender quem
eram os Chinchorros. O facto de haver uma grande diversidade de
investigadores de diferentes especialistas, todos a tentarem lançar
luz sobre quem seriam e como seriam os Chinchorros, tem feito avançar
o conhecimento que temos sobre este povo tão antigo. O facto
é que, o povo que, tanto quanto se sabe, deu origem à
arte da mumificação tinha sido até agora simplesmente
ignorado. Uma das razões pelas quais os Chinchorros não
receberam muita atenção enquanto objecto de estudo
é que praticamente não há materiais culturais
para estudar uma vez que esta população não
tinha grandes edifícios ou ferramentas muito desenvolvidas.
A sua tecnologia era uma tecnologia muito básica virada para
a resolução dos problemas práticos relacionados
com a sobrevivência, dando também ênfase à
morte.
As escavações
que decorrem neste momento serão as últimas escavações
em Arica. A razão para tal remonta à famosa escavação
de 1983. Os 96 corpos recuperados consagraram os Chinchorros como
os primeiros e mais prolíficos preparadores de múmias
que o mundo conheceu. Mas também deixaram os cientistas com
mais corpos em mãos do que aqueles que podiam tratar o que
levantou o problema da preservação. Por um lado era
muito positivo e estimulante encontrar tantos corpos mas por outro
lado a descoberta causou um sentimento contraditório pois
é muito difícil conseguir preservar tantas múmias.
No entanto, era uma "operação de salvamento"
que tinha que ser realizada e com rapidez. O sítio das escavações
pertencia a uma companhia privada de fornecimento de água
que interrompeu as suas obras apenas o tempo suficiente para que
as múmias fossem retiradas.
Foram levadas
para o museu de San Miguel de Azapa, que fica a cerca de 15Km de
Arica, faz parte da Universidade local e é um prestigiado
centro de arqueologia. Para guardar o grande número de crânios,
ossos e corpos resultante da escavação o pessoal teve
que deslocar vasos e outros artefactos menos importantes dos locais
onde estavam guardados. Até as múmias Incas, em tempos
a principal atracção do museu, foram relegadas para
segundo plano a favor dos recém descobertos tesouros dos
Chinchorros. Num anexo com ar condicionado e temperatura controlada
ficaram guardadas as múmias mais valiosas e mais bem conservadas,
à espera dos exames do especialistas.
Uma
típica múmia Chinchorro está envolvida numa
capa de juncos, possui uma máscara facial de argila que suporta
uma grande cabeleira. A múmia mais bem conservada do museu
é uma rapariga cuja máscara facial é de argila
escura e por isso o pessoal do museu chama-lhe a Madonna Negra.
A colecção inclui centenas de fragmentos de múmias
entre os quais inúmeros crânios que já não
possuem as máscaras faciais de argila mas que contêm
pistas vitais acerca da saúde, condições de
vida e até mesmo das causas de morte entre os Chinchorros.
A primeira múmia
a ser encontrada no local, em 1915, foi a de uma criança.
Nessa altura, ninguém fazia ideia de que tinha milhares de
anos. Hoje em dia já se encontra no meio de outros Chinchorros
(talvez até membros da sua própria família).
A história
dos Chinchorro é fascinante. A sua cultura incluía
a prática de formas e mumificação muito elaboradas
3000 anos antes de se iniciar a mesma prática no Egipto.
Apesar de a inicio se ter pensado em poder fazer comparações
com o Egipto a ideia teve que ser abandonada pois as histórias
destas duas civilizações vem de direcções
e caminhou para direcções muito diversas. No seu todo
são duas histórias totalmente diferentes.
Apesar de tudo
as múmias do Egipto e do Chile acabam por ter alguma coisa
em comum. Sempre que pensamos em múmias inevitavelmente acabamos
por pensar no Antigo Egipto. Os antigos egípcios eram de
facto mestres na arte da mumificação. O corpo era
levado aos embalsamadores que lavariam o corpo, retirariam os órgãos
internos deixando apenas o coração (o cérebro
também era retirado). O corpo seria então deixado
a secar durante 40 dias. Depois seria lavado novamente e untado
com óleos e resinas o que servia para selar a superfície
da pele através do fechar dos poros e de uma espécie
de "plastificação" natural da pele. Seria
então embrulhado em tecidos, normalmente tiras de linho,
depositado no sarcófago e devolvido à família.
Nas arribas
costeiras onde está a centrar-se a mais recente campanha
de escavações há múmias por todo o lado,
logo pouco abaixo da superfície da areia o que permite descobrir
as múmias exactamente onde foram depositadas há milhares
de anos. O que se encontra nestas múmias em comum com as
egípcias é o facto de também estas múmias
surgirem numa zona de deserto, os processos de mumificação
natural (por acção do ar quente e seco) dos corpos
que não foram mumificados artificialmente e, naqueles que
o foram, os mesmos processos de embrulhar o corpo em tecido sendo
depois enterrado no deserto.
As técnicas
egípcias de mumificação foram inspiradas pelo
deserto do Sahara e é provável que as primeiras múmias
dos Chinchorros se tivessem formado acidentalmente no deserto de
Atacama. Uma múmia é um cadáver em que o processo
normal de decomposição foi suspenso. Há cerca
de 9000 anos, os Chinchorros limitavam-se simplesmente a envolver
os seus mortos em sudários de junco e a enterrá-los
depois cuidadosamente no deserto sabendo que a secura das areias
do Atacama faria o resto. Lentamente, ao longo de um período
milenar, foram adaptando este fenómeno natural até
chegarem a um elaborado ritual post-mortem que era tudo menos natural.
A sua técnica
de mumificação era absolutamente única. Com
lâminas de pedra lascada arrancavam toda a carne, esvaziavam
o corpo retirando todos os tecidos moles e o sangue. Depois reforçavam
o esqueleto atando estacas de madeira aos ossos. As cavidades do
corpo eram preenchidas então com ervas, cinzas e pêlo
de animais. A pele era então resposta no lugar e cozida.
Braços e pernas eram também reforçados com
paus e depois, um por um, envolvidos em tecido vegetal. O corpo,
por inteiro, era coberta com uma espécie de pasta de cinza
branca que se pintava depois com manganês preto. Uma máscara
de argila com uma sofisticada cabeleira feita de cabelo humano cobria
o rosto e a cabeça. Uma vez pronta, a múmia estava
apta a ser transportada acompanhando os vivos. Era uma efígie
robusta, muito diferente do esplendor pictórico dos egípcios.
Ironicamente,
a imagem que nos é tão familiar do Antigo Egipto não
é sequer das múmias. Quando olhamos para o contentor
externo temos que nos lembrar de que isso simplesmente não
é o indivíduo, não é o corpo, mas apenas
a forma externa que o cobre. O corpo, no caso da cultura dos Chinchorros,
não pode ser separado do embrulho exterior (como seria no
caso dos egípcios). No caso dos Chinchorros trata-se de um
pacote completo e indissociável. O corpo mumificado, com
os juncos e a máscara são incrivelmente simples e
desprovidos de sofisticação e, no entanto, acabam
por ser muito modernos na sua aparência. Nas máscaras
faciais são deixados apenas os traços faciais básicos.
Apesar disto estas múmias têm algo que nos emociona
de uma forma muito profunda e isto é algo que os egípcios
acabaram por nunca saber como fazer.
O mais notável
de tudo, e é um aspecto em que se distinguem de todos os
outros é que os Chincorros aplicavam os seus sofisticados
processos de mumificação tanto nas crianças
como nos adultos, como se quisessem conservar junto de si todos
os seus mortos ou como se, de certo modo, sentissem que eles ainda
continuavam vivos.
Na escavação
da encosta junto ao mar, a equipa de arqueólogos responsável
pelo sítio, pôs a descoberto fortes indícios
de que aquele sítio era um povoado Chinchorro com milhares
de anos. A localização era ideal. Trata-se de uma
encosta arenosa e fortemente inclinada. Camada após camada
puseram à descoberta conchas de moluscos e outros objectos
igualmente reveladores. Aquilo que estas camadas põem a descoberto
é o modo de vida dos Chinchorros, um povo de caçadores-recolectores
da Idade da Pedra que tinha abandonado o seu modo de vida nómada
em troca de uma existência mais estável junto à
costa. Permaneceram nesta zona durante milhares de anos pois aqui
tinham tudo quanto necessitavam para uma existência relativamente
confortável. Havia leões marinhos e peixe com fartura.
As agulhas dos cactos serviam para fazer os anzóis. Dos juncos
do vale à beira-rio, das peles dos animais, faziam vestuário
e esteiras, sólidas redes de pesca, delicados ornamentos
corporais e sudários para envolver os mortos.
O quadro que
se pode fazer com estes dados é o de um povo primitivo mas
muitíssimo criativo cuja imaginação e energia
espiritual não se manifestavam na cerâmico, no mobiliário
ou nas construções, mas sim na arte misteriosa de
mumificar os mortos. De qualquer forma este quadro também
mostra que não tinham uma vida muito saudável. A análise
dos crânios demonstra que a dependência do mar tinha
o seu preço. Muitos indivíduos do sexo masculino sofriam
de problemas auditivos e doenças do canal auditivo que levavam
à surdez. Doenças associadas à apanha de mariscos
e outros animais marinhos cuja captura exige o mergulho em água
frias. Nos crânios também é frequente encontrar
vestígios de fracturas provocadas por golpes violentos o
que leva a supor que a vida entres os Chinchorros não era
nenhum Jardim do Éden. A violência parecia ser uma
coisa vulgar. Junto à costa a vida era turbulenta.
Já vimos
como as múmias dos Chinchorros, apesar de não possuírem
o grau de evolução pictórica das egípcias,
eram muito sofisticadas. Mas quem fazia, de entre os Chinchorros,
as múmias? Quem era responsável pela mumificação
dos corpos? Devido aos dados recolhidos não há forma
nenhuma de dizer que teriam sido as mulheres ou os homens, os mais
novos ou os mais velhos que se encarregavam dessa tarefa. A única
coisa que se pode fazer é presumir baseados nos dados recolhidos
e na comparação desta sociedade da Idade da Pedra
com outras de períodos mais ou menos semelhantes, que seriam
os homens quem iria para o mar mergulhar e pescar e que seriam as
mulheres que estariam encarregues de preparar os alimentos recolhidos
pelos homens num processo semelhante a qualquer outra sociedade
humana deste período. Assim, presumivelmente seriam as mulheres
as únicas a terem os conhecimentos necessários (que
aprendiam na preparação de alimentos) para esfolarem
os corpos, retirar os tecidos moles do interior do corpo e depois
reconstrui o corpo cosendo a pele sobre a múmia. Por outro
lado poderia ser que entre as mulheres houvesse maior propensão
e preocupação com a preservação dos
mortos, uma vez que as mulheres tinham que lidar com frequência
com a morte devido à elevada taxa de mortalidade infantil
das populações daquela época. Pode ter sido
que o inicio da mumificação tivesse sido iniciado
ou compelido devido aos fortes laços entre mães e
filhos (que levaria uma mãe a desejar manter o seu filho
consigo a todo o custo, mesmo depois de morto).
A forma como
os Chinchorros trabalhavam os mortos mostra um grau de sofisticação
no manuseio de ferramentas e materiais muito elevado. Por outro
lado estavam extremamente familiarizados com a anatomia humana.
Sabiam remover os órgãos internos para evitar a decomposição
e as costuras na pele depois de concluída a múmia
eram realizadas nos mesmos locais que os egípcios usavam
o que revela um conhecimento dos processos necessários e
uma atenção ao detalhe fabulosos. Por outro lado,
a forma como a múmia era depois vestida e cuidada mostra
uma preocupação e, aparentemente, um carinho muito
fora do vulgar para com os seus mortos.
Mumificar as
crianças parece que era um procedimento muito caro aos Chinchorros.
Nas múmias dos mais novos é notório um cuidado
tão extremo com os dos mais velhos com as cabeleiras muito
elaboradas aplicadas às máscaras de argila. Por outro
lado, a maior parte das múmias artificias parecem ser de
crianças. Na maior parte das outras culturas antigas as coisas
não se passavam assim, uma vez que às crianças,
na maior parte dos casos, nem sequer era dado um funeral minimamente
decente. Noutros sítios, a mumificação estava
habitualmente reservada para os privilegiados, os ricos e poderosos
pois a mumificação é uma arte que requer tempo,
energia e dedicação. Apesar disso os Chinchorros mumificavam
toda a gente de forma requintada milhares de anos antes do egípcios.
Porque será que o faziam? E de onde vinha este culto extraordinário?
Os Chinchorros
foram os primeiros a chegar à costa de Arica e a instalarem-se
permanentemente há 9000 anos. Mas as suas origens são
ainda um mistério. Há três teorias mais populares
quanto à origem deste povo. Podiam ter vindo de barco de
um sítio qualquer do Pacífico, mas não existem
quaisquer provas que secundem esta teoria. Podiam ter-se deslocado
ao longo da costa vindos de Norte ou de Sul e para explicar esta
teoria existem alguns indícios. Por outro lado podem também
ter vindo das montanhas. Ao descer das montanhas podiam ter encontrado
os vales que são juncados de rios magníficos e que
vão desaguar na costa. Era possível que, após
terem encontrado os vales e os rios tivessem seguido estes últimos
até chegarem à costa. A costa teria-lhes parecido
um pequeno paraíso em comparação com o deserto
que tinham atravessado (mesmo que o tivessem feito ao longo dos
rios) uma vez que estava repleta de vida: bivalves, mariscos, moluscos,
leões-marinhos, ervas, sementes, etc...
Esta última
teoria, segundo a qual os Chinchorros seriam um povo da Montanha
que teria descido até à costa é fundamentada
com vestígios encontrados a mais de 100Km, no cimo dos Andes,
onde especialistas em povos nómadas dos Andes encontraram
recentemente uma mandíbula de tubarão com mais de
10.000 anos numa gruta a mais de 3.000m de altitude. É uma
indicação de que o povo que em tempos viveu nessa
gruta poderia relacionar-se com a zona costeira. Mas se as populações
desse tempo viviam em grutas a mais de 3000m de altitude o que aconteceu
para que há 9000 anos se verifiquem sinais de um boom de
povoados junto à costa? Tudo parece apontar para um cataclismo
ambiental que alguns indícios parecem confirmar que teria
levado as populações das montanhas para a zona costeira.
É muito provável que os Chinchorros fossem um povo
nómada que uma grave seca obrigou a descer dos Andes até
à costa. Mas antes de chegarem à costa tinham que
atravessar o impiedoso deserto de Atacama. Os humanos sempre quiseram
explorar novos territórios, sempre quiseram saber o que está
"do outro lado da montanha" mas os Chinchorros parecem
ter sido os primeiros a usar os "corredores" de vales
e rios dos Andes para o fazerem.
No museu de
San Miguel de Azapa, a tarefa de reunir e catalogar as relíquias
dos Chinchorros tem prosseguido desde o achado de 1983. Os computadores
do museu iniciaram agora uma base de dados com todos os materiais
disponíveis sobre este povo. Trata-se de um importante trabalho
que está permanentemente a ser actualizado. Dois investigadores
americanos que costumam usar técnicas de sondagem sem danificar
as amostras estudaram também as múmias à sua
maneira. Basicamente recorreram a técnicas como a endoscopia,
o raio-X e TAC para avaliar as múmias. Os dados apurados
através deste sistema de análise foram também
guardados na mesma base de dados do museu.
Estes investigadores
fizeram radiografias das múmias no hospital local. A ideia
destas análises é poder adicionar dados às
recolhas anteriormente feitas de forma a que se possa verificar
se estes novos dados podem ajudar a tirar algumas novas conclusões
sobre as múmias ou sobre os Chinchorros. O tipo de coisas
que os raios-X podem ajudar a determinar são dados como a
idade relativa do indivíduo mumificado, a presença
ou ausência de alguns tipos de patologias, anormalidades nos
ossos (como cortes, fracturas, objectos estranhos inseridos nos
ossos, etc) e, com muita sorte, pode conseguir-se determinar a causa
da morte do indivíduo.
Nas múmias
dos Chinchorros é frequente descobrir-se que os indivíduos
são jovens. Foram também descobertos alguns cortes
longitudinais nos ossos das múmias, mesmo em alguns corpos
mumificados naturalmente pelas areias do deserto. Este tipo de golpes
foi infligido após a morte. O TAC mostra estes cortes de
forma nitidamente visível em cada secção transversal
produzida pelo TAC ao longo de quase todo o comprimento dos fémures.
Esta característica nunca havia sido descoberta noutras partes
do mundo. A única razão para que os fémures
tenham sido cortados longitudinalmente seria para permitir chegar
ao tutano do osso de forma a retirá-lo. As implicações
deste facto, apesar de não haver certezas, pode ser a existência
de operações post-mortem devido a práticas
de canibalismo. Isto poderia ajudar a explicar o porquê de
os Chinchorros arrancarem de forma tão particularmente cuidadosa
toda a carne dos corpos antes de os mumificarem.
A possibilidade
de actos de canibalismo neste caso não tem a ver com nenhuma
falta de provisões, tratar-se-ia antes de um canibalismo
ritual relacionado com a forma como este povo tratava os seus mortos.
Trata-se de uma hipótese que lida com um canibalismo cultural
(como ele é também conhecido noutros povos) por oposição
ao canibalismo que resulta da necessidade de sobrevivência
de um determinado grupo de indivíduos (como é o caso
do canibalismo que os indícios indicam na Ilha da Páscoa,
por exemplo).
De qualquer
das formas, se esta hipótese se verificasse correcta estaríamos
perante algo de único em todo o mundo pois neste caso o canibalismo
é uma prática relacionada directamente com o culto
dos mortos. Isto aponta para uma estrutura mental social e individual
totalmente nova que nunca havia sido descoberta e é isso
que os Chinchorros têm de tão fascinante. A ideia de
que os Chinchorros possam ter consumido a carne dos seus jovens
mortes é algo bizarra mas os exames radiológicos revelaram
ainda outros indícios de difícil explicação.
Juntamente
com múmias de crianças foram encontradas formas que
poderiam ser bonecos. O museu mandou também estes bonecos
para análise radiológica e descobriu-se que, de facto,
se tratava de fetos mumificados. Ora, se mumificar crianças
já de si é algo de único, mumificar nados-mortos
é absolutamente bizarro e de explicação extremamente
difícil! É uma ideia de alguma forma estranha a de
uma sociedade "primitiva" com claros indícios de
violência decorrente do relacionamento interpessoal, com indícios
de canibalismo, mas que, apesar de tudo, respeitava de tal forma
os seus mortos que ia ao ponto de querer preservar mesmo as crianças
que não chegaram a nascer. Este tipo de dados parecem apontar
para uma sociedade que, apesar de "primitiva", não
deixava por isso de ter uma noção de alma muito presente
enquanto indivíduos. Os dados também parecem indicar
que o seu conceito de alma era também importante para si
enquanto grupo organizado. De facto, os Chinchorros pareciam não
atribuir muita importância a aspectos mais materiais da vida
(mobiliários, cerâmica, edifícios) mas pareciam
possuir uma ideia já muito desenvolvida da importância
da "alma" e dos seus próprios corpos. A mumificação
dos seus mortos parece indicar que os Chinchorros tinham noções
muito desenvolvidas de que a morte era uma passagem para outro estado
e que haveria algum elemento presente nas duas vidas (a pré-morte
e a pós-morte) que necessitaria do corpo preservado.
A mumificação
poderia ser uma maneira de manter os entes queridos quase vivos
através da presença do seu corpo apesar de a sua alma
ter passado para outro estádio da vida. De qualquer forma,
quanto aos porquês dos Chinchorros terem produzido as primeiras
múmias conhecidas do mundo são mais as perguntas que
existem do que as respostas. Não sabemos sequer se este povo
vivia obcecado com a morte ou com a vida.
Um aspecto curioso
e que ainda não tem explicação é o de
este povo se ter dedicado à mumificação dos
seus mortos durante perto de 4000 anos e depois, misteriosamente,
ter parado.

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